Bai Si – A cerimônia de discipulado
Nas artes marciais a relação entre mestre e discípulo é sempre mais próxima e formal. Todos sabemos que só devemos chamar o mestre de determinada maneira, como Sensei nas artes japonesas, e devemos cumprimenta-lo de determinada maneira, curvando-se no mesmo exemplo. Nas artes marciais chinesas esta proximidade e formalidade são ainda mais acentuadas graças à influência confucionista na cultura chinesa. A filosofia de Confúcio colocava a família como a coisa mais importante ao indivíduo, por isso no kung fu nos referimos a mestres e colegas como família, o que já foi abordado antes, e usamos o cumprimento kinlai, que também já abordamos. Mas ainda há um elemento que ainda não discutimos: a cerimônia de discipulado.
Esta cerimônia se chama拜師 Bai Si em cantônes ou Bài Shī em mandarim, literalmente traduzido como “curvar-se ao mestre”; as vezes também é chamada de cerimônia do chá. Na antiguidade, os estilos de kung fu eram guardados por gerações de famílias, ou ensinado a poucas pessoas. Não haviam “academias” ou “escolas” como existem hoje, e os mestres não ensinavam para qualquer um, geralmente tratando técnicas, métodos de treinamento, formas, etc. como um segredo. As vezes possuíam alunos comuns a quem ensinavam o básico do estilo, mas só ensinaria o restante aos discípulos. Havia basicamente 3 maneiras de se tornar um discípulo e passar pela cerimônia: quando o aluno comum mostrava talento, perseverança e dedicação poderia ser escolhido pelo mestre para realizar o Bai Si; ou então um colega mais velho que já era discípulo poderia indicar um mais novo para a cerimônia; ou falar diretamente ao mestre que está interessado em se tornar discípulo, o que ele poderia aceitar, recusar ou exigir mais tempo de pratica do aluno.
Durante a cerimônia, mestre e aluno juravam lealdade e comprometimento um para o outro. O mestre ensinaria os maiores segredos da sua arte e em troca o aluno possuiria dedicação total à arte marcial e seu mestre. Fazer o Bai Si significava que você teria uma relação muito mais próxima com seu mestre, quase de pai e filho. Era como se fosse um clube especial, muito difícil de ser admitido, mas muito fácil de ser expulso. O novo discípulo estaria sob constante provação. Deveria mostrar qualidade técnica, moral e seguir estritamente as regras da escola, deveria obedecer qualquer comando de seu mestre, ter obrigações especiais como limpar, manter e promover a escola/local de treino, ensinar aos colegas mais novos, representar o mestre em ocasiões onde ele não poderia comparecer, e muitas outras obrigações. As vezes também era proibido de treinar com outros mestres, a não ser por permissão de ambos.
Os alunos que não cumprissem com suas obrigações ou quebrassem as regras da escola eram expulsos permanentemente, não poderiam nem voltar a ser alunos comuns. O Bai Si também significava que a partir dele você seria um representante oficial de seu mestre e seu estilo. Perder ou ganhar alguma luta, sua boa ou má conduta afrente de qualquer assunto, repercutiria na imagem do seu mestre e escola, trazendo desonra para todos.
As regras e procedimentos para realização do Bai Si variavam de escola para escola. Mas geralmente seguiam os seguintes passos:
- O aluno a se tornar discípulo seria instruído a respeito dos procedimentos da cerimonia por um colega mais velho ou o próprio mestre. No dia da cerimônia, a escola inteira seria reunida, era um motivo de celebração.
- O mestre estaria virado de costas para o altar da escola, sentado numa cadeira. O discípulo estaria ajoelhado em frente ao mestre. Um colega mais velho ou a pessoa que te indicou, ele estaria atrás do mestre à sua esquerda.
- O aluno mais velho colocaria chá numa xícara de chá chinesa e entregaria ao candidato. Este entregaria a xícara ao mestre ou a seguraria com as duas mãos à frente do seu corpo.
- O candidato então curvaria a cabeça e diria algo como “Meu nome é…, sou filho de…, venho de… Eu humildemente peço a honra e privilégio de ser aceito como discípulo do mestre…” Então se levantaria e ofereceria a xícara ao mestre.
- O mestre seguraria a xícara sem beber. Então o candidato se curvaria 3 vezes (o Kautau叩頭, maneira chinesa de se curvar a um superior) e faria um juramento. A cada vez que se curvasse juraria compromisso com o mestre, escola e tradição/estilo.
- O mestre então beberia o chá que lhe foi oferecido se aceitasse o pedido do aluno. Em seguida colocaria chá de um outro tipo para o candidato, talvez extremamente quente ou amargo, e o candidato deveria beber num gole só apesar da dor ou desconforto, significando a disposição para enfrentar dificuldades a diante.
- Depois de beber o chá o candidato entrega a xícara ao aluno mais velho e oferece um Hong Bao 紅包 para o mestre, um envelope vermelho contendo uma soma de dinheiro pré-determinada. Poderia haver uma grande ou razoável quantia, dada em notas, sempre somando em número ímpar e sem conter o número 4 ou 14, pois 4 em chinês (四) se fala “sei” em cantonês e “sì” em mandarim são muito parecidos com a palavra morte (死), “séi” em cantonês e “sǐ” em mandarim.
- O mestre pegaria o Hong Bao e ajudaria o aluno a se levantar. Então diria algo como “Deste dia em diante você é parte da minha família e será chamado de…” então o novo discípulo receberia um nome da família de kung fu.
- Finalmente o mestre e novo discípulo tirariam uma foto juntos, com o mestre sentado e o aluno a sua esquerda.
A partir de agora o aluno se transformaria num TouDai (徒弟), um discípulo, aprendiz.
Lembrem-se que o Bai Si não era uma cerimônia de graduação. Na graduação o aluno poderia receber um certificado e tiraria uma foto à DIREITA do mestre, o que representava que o aluno estaria pronto para ensinar seus próprios alunos.
O Bai Si não era realizado apenas para o discipulado em artes marciais, também poderia ser usado para pintura, música, culinária, medicina e etc. Hoje em dia poucas academias ainda realizam o Bai Si, seja porque pouca gente está disposta encarar os desafios antes e depois da cerimônia, ou porque a escola não mais planeja reservar parte do conteúdo do estilo para um seleto punhado de alunos. Mas de qualquer forma devemos lembrar de como era difícil aos nossos antepassados de kung fu aprender essa arte, e também honrar e nos comprometer com nosso mestre e tradição.
Por Murilo Caruy Povoa